terça-feira, 3 de março de 2009

Exercício de memória (de interesse e gozo pessoal, não percam tempo a ler) - 6.ª Parte

Viagem aos EUA, Los Angeles, Califórnia - 1994. Tinha quase (!) 28 anos. Estava meio perdido. Por nada de especial mas por tudo um pouco. Entre outras coisas, sentia a "adolescência" (bem tardia) a escapar-se-me, com tudo o que isso implicava... Entretanto, o meu insuficiente inglês fez-me pensar que seria útil fazer um curso intensivo algures. Ainda para mais porque a agência de publicidade para onde agora iria era uma multinacional inglesa que previlegiava bastante o domínio do inglês. Um curso intensivo num país em que o inglês fosse a língua materna asseguraria melhores resultados. Aprofundei a possibilidade. Visitei uma entidade promotora de cursos de inglês nos EUA. Foi aí que conheci o Bruno. Também ele procurava o mesmo. A única diferença é que ele não sabia se ia para ficar. Decidimos viajar juntos. Decidimos também e em conjunto a escola para onde iríamos (o ELS em Santa Mónica, Los Angeles). O curso teria a duração de um mês, mais exactamente quatro semanas. A Saatchi não levantou qualquer problema em esperar esse mês e mais alguns dias pelo meu regresso. Para eles, o curso de inglês, pago por mim, era um valor acrescentado. E assim partimos, nos finais de Janeiro de 1994, prontos a iniciar o curso que decorreria durante o mês de Fevereiro. Não sem antes fazermos um jantar de despedida com amigos do Bruno e alguns dos meus amigos, no restaurante em que na altura o meu irmão mais velho tinha uma quota, e em que a minha mãe era "gerente". Na Rua de São Caetano à Lapa (tinha um bom bife na pedra). Partimos extasiados (pela experiência que anteviamos e também pela pastilha que tomámos no avião). Recordo-me de ter achado graça, não sei se pelo "êxtase", à rota feita pelo avião. A rota Polar. Permitiu-me ir, durante algum tempo, a observar pela janela os mares gelados da Gronelândia, com o aparecimento sucessivo e cada vez em maior quantidade, de pequenas manchas brancas, que percebi serem icebergs. Chegámos finalmente a LA. Fomos de boleia (com alguém amigo de um familiar meu ou do Bruno que agora não consigo precisar bem) até ao hotel em que ficámos nos primeiros dias, já em Santa Mónica (depois alugámos um pequeno apartamento no bairro de Hollywood, perto do Chinese Theatre). LA não é propriamente uma cidade muito apelativa à vista. A sua arquitectura de betão, excluindo os arranha-céus do centro da cidade, é de facto pouco atraente. Lembro-me dessa primeira impressão. Lembro-me também de sair logo na primeira noite em que chegámos. O Bruno, três ou quatro anos mais novo do que eu, era de uma energia inesgotável. E eu ia a reboque. Para dizer a verdade, pouco contrariado. Talvez, apenas, por vezes, mais cansado. Um acontecimento importante que moldou toda a nossa estadia em LA foi o tremor de terra (um Big One com 6,7º na escala de Richter) que se tinha dado em Los Angeles, poucos dias antes da nossa chegada. Esse earthquake deixou marcas. Mais de 20 mortos e vários edifícios e viadutos destruídos total ou parcialmente. Para nós foi mais uma excitação. Sobretudo, quando começámos a sentir as réplicas, que não sendo o próprio tremor-de-terra original, já davam, e bem, para sentir uma sensação de pânico como nunca antes (ou depois) senti. É algo que se sente nas entranhas (alerta para morte eminente?). Sentimos várias réplicas do tal Big One que foram abrandando com o passar do tempo. Seja como for, evitei sempre, por exemplo, parar debaixo de viadutos quando em fila nas auto-estradas, e outras coisas semelhantes. Na escola onde fizemos o curso intensivo de inglês, o ELS, fizemos vários exercícios de simulação à ocorrência de tremores-de-terra. Comportamentos a ter, saídas ordenadas, locais a evitar (elevadores, claro), locais a procurar (ombreiras das portas), etc...E saímos também, duas ou três vezes, das respectivas instalações, não por mero exercício de simulação mas, de facto, na sequência das ditas réplicas. E quanto ao pânico que senti, observei com curiosidade o facto deles, americanos (na verdade a escola tinha gente de todo o mundo, mas aqui o elemento de referência eram mesmo os americanos), sentirem o mesmo pânico que eu sentia (embora desse para perceber que o tentavam controlar da melhor maneira que podiam). Afinal, nunca se sabe, quando um tremor-de-terra começa, se esse vai ser apenas um pequeno sismo ou se vai ser O Big One dos Big Ones (que pode acontecer a qualquer momento...). Outro aspecto, embora menor, de que me recordo, é a importância que o Super Bowl tem para os americanos. Na final do campeonato de futebol americano pára (quase) tudo. Quase, afinal trata-se dos EUA, onde as pessoas têm (tinham?) vergonha de dizer que estavam de férias ou que gozavam mais de quinze dias de férias por ano (estes americanos são loucos diria Astérix, verdadeiro europeu, embora duma tribo menos alinhada). Durante quatro semanas estivemos e passeámo-nos pela "Grande" Los Angeles. Conhecemos a "noite" de LA, e tudo o resto, tanto quanto nos foi possível. Dos arranha-céus de Downtown, a Santa Mónica, passando por Hollywood, Beverly Hills, Rodeo Drive, Melrose e Bel Air. Marina del Rey, Venice Beach, Malibú (onde tinham já ocorrido grandes incêndios que custaram as casas de muitos "famosos"; e onde o Bruno ia surfar, enquanto eu ficava a ver, das falésias sobre a praia, juntamente com outros locais, rodando entre nós joints, uns atrás dos outros). Aproveitámos os fins-de-semana para conhecer o inevitável Universal Studios e, um pouco mais afastadas de Los Angeles, a Magic Mountain (roller coasters para gente de barba rija) e as montanhas com neve de San Bernardino. Findo o curso (que de facto melhorou o meu inglês, e bastante), propuz-me ficar mais cerca de duas semanas para conhecer um pouco mais daquela região dos EUA. E foi assim que, não com o Bruno que ele não quis ir (já não me recordo porquê), mas com outro colega que conheci no ELS (um italiano de quem, é imperdoável, não me recordo o nome), fui, de carro, passar alguns dias a Las Vegas. Fomos num Kia (não me lembro exactamente mas era uma marca coreana, embora numa versão adaptada aos gostos/posses americanas, com 2.000 cm3 de cilindrada ou algo parecido e mudanças automáticas) que eu e o Bruno tinhamos alugado alguns dias depois de chegarmos a Los Angeles. O percurso entre LA e Las Vegas só por si já valia a viagem. 300 milhas, cerca de 4 horas de viagem, a atravessar o deserto de Mojave. Uma paisagem digna de qualquer filme de cowboys. Chegada a Las Vegas. Muitos neons, mas muitos mesmo. Imponentes hotéis casino abertos 24 horas por dia. A arquitectura desses hotéis casino, e de outras construções, a remeter para grandes ícones universais como a Grande Pirâmide do Egipto, o castelo de Excalibur ou a Torre Eiffel. À frente do hotel casino Mirage, um vulcão entra em erupção, expelindo lava. No Treasure Island, o espectáculo, que se repete de x em x minutos, é uma batalha naval com navios pirata. De encher o olho. Entretanto, alheios a tudo isto, jogadores vindos de todo o mundo ocupam as slot machines, as diversas mesas de jogo ou a inevitável roleta. Fait vous jeux... é o que se ouve (na verdade não me recordo se este francesismo era o termo utilizado mas é o que agora me ocorre). A frequência destas salas de jogo é de uma "democracia" bem à americana. De pessoas em calças de ganga e t'shirt até casais de smoking e vestido de noite, vê-se de tudo um pouco. As bebidas são oferecidas. Basta levantar um dedo e de imediato uma bonita rapariga (ou rapaz) aproxima-se para que façamos o pedido. Minutos depois estamos a beber o que quizer-mos. Claro, embriaguei-me e entornei (acho que uma garrafa de cerveja) em cima do pano da roleta (é verdade!). Recordo-me de não terem sido agressivos comigo (também a mim, beber, não me dá para qualquer agressividade, antes pelo contrário). Remediaram o acidente e o jogo prosseguiu. Apenas tive que ter mais cuidado. Um segundo erro e seria posto fora do casino. Visitámos um rancho de cowboys (recriação para turistas). Afinal estávamos no Nevada. Por sinal, único, ou um dos únicos estados norte-americanos em que a prostituição é legal, proliferando os bordeis. Não recorremos à prestação de tão específico serviço. Penso que por pensarmos em conseguir algo mais natural, e que não nos fosse à carteira. Não aconteceu. Não se sendo jogador compulsivo, ao fim de dois ou três dias Las Vegas perde, não digo o seu encanto, mas, talvez, a razão da visita efectuada. Faltava-nos, no entanto, uma coisa. Aproveitar a proximidade e visitar o Grand Canyon, já no Arizona, cujo vale foi formado pelo rio Colorado, ao longo de milhares de anos. A visita ao Grand Canyon foi feita num pequeno avião bimotor para não mais de dez passageiros. Vistas aéreas fantásticas. Aterrámos nas proximidades, numa pista de terra, e passámos uma tarde a contemplar tão magnífica paisagem. Cenário grandioso. Grandes e vertiginosas vertentes rochosas. A aridez da terra, o pó, os cactos, alguns pássaros num vôo planado, tudo murmura num silêncio avassalador. Só interrompido pelo eco provocado, amiúde, pelo homem. É isso que o Grand Canyon permite e provoca, Contemplação. Quem o pretenda, pode visitar, percorrendo alguns quilómetros de camioneta, a partir da pista de aterragem, uma comunidade de índios Hualapai. Não o fizemos (na altura pareceu-nos demasiado "turístico"... na verdade afastámo-nos dos restantes companheiros de viagem e perdemos a camioneta!.., hoje acredito que assim tenha sido melhor, pelo tipo de ligação que nos permitiu usufruir com o local). Ficámo-nos pela contemplação. Voltámos a Los Angeles. Fiquei então em casa de umas amigas indonésias (nessa altura o diferendo entre Portugal e a Indonésia, provocado por Timor, estava no auge), que tinham estado também no curso do ELS. Referências a Timor, houve algumas. Mas em tom de confraternização. Nunca provocando qualquer tipo de discussão. Em Los Angeles recordo-me ainda de um episódio. Uma noite em que ia sózinho de carro (não sei de onde vinha nem para onde ia; frase estranha esta), passei um sinal vermelho, num cruzamento em que virei à direita (em LA é habitual os sinais de trânsito estarem depois dos cruzamentos o que, mediante sinalização própria para esse efeito, permite virar à direita, mesmo quando o sinal está vermelho). Não era este o caso. Devia ter parado. Quando dou por mim tenho um carro da polícia, K9 Patrol, a fazer-me sinais para encostar na berma. Em termos, digamos, de polícia para potencial criminoso. Parei de imediato, cheio de medo, a tremer (o que me vai agora acontecer, pensei). Vi um polícia chegar-se ao vidro do carro com a mão junto ao coldre da arma . O colega ficou, estratégicamente, a 3/4, na traseira do carro, com uma shotgun na mão, de forma a que eu não o conseguisse ver claramente. Apenas o presenti. O K9 nunca saiu do carro. Gaguejei um...I'm not a criminal, I'm not a criminal. I'm an english student in ELS, St. Mónica. Tentei convencer o polícia de que teria passado o sinal pensando estar num daqueles casos em que seria permitido avançar apesar do sinal vermelho. Mera desculpa. Sabia bem o que tinha feito. O polícia, apercebendo-se do meu pânico, acalmou-me, dizendo que apenas me iria multar. Lembro-me de me dizer (o que não será habitual) que, inclusivamente, caso saisse do país no espaço de x dias (seria um mês ou coisa assim), nem deveria chegar a pagar a multa. De facto, vinha-me embora poucos dias depois pelo que não paguei a tal multa. Ficou o susto. Voltei para Portugal. O Bruno ficou em Los Angeles. Nunca mais o vi! Excepto uma vez em Lisboa, não há muito tempo, em que me cruzei com alguém que me fez lembrar o Bruno. Olhei para trás, ele seguiu. Passados tantos anos... é impossível ter a certeza. Também eu ponderei ficar em Los Angeles. Mas o cenário que tinha pela frente, trabalhar numa pizzaria ou algo do género e ser imigrante nos EUA sem qualquer certeza de conseguir o green card, embora me tivesse chegado a tentar, não me fez ficar. Preferi voltar. Para Portugal, para a minha família, para a Xana, para a Saatchi. Nunca saberei o que teria sido o rumo da minha vida caso tivesse ficado. Mas não é isso mesmo a vida? Tomada de decisões, uma após outra, sem nunca podermos saber o que seria se...Marca indelével desta viagem, trago impressa na pele uma tatuagem de um lobo (loba diz a Xana) que por muito que a minha memória se apague, a mesma sempre me lembrará o período em que mais solitário me senti (até à data) na vida. Qual lonesome cowboy em terras de índios!

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