quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Exercício de memória (de interesse e gozo pessoal, não percam tempo a ler) - 4.ª Parte

Desta vez, inter-rail, sózinho - Verão de 1989. Na verdade, a viagem começou com a boleia de um amigo, o Rui, até ao norte da Holanda. O Rui ia participar numas regatas de snipe que iam ter lugar num belíssimo lago próximo de Groningen (Appingedam? É daí, pelo menos, um postal que então enviei à Xana). Partimos num jipe, que rebocava o snipe. Eu, o Rui, a Mónica, namorada do Rui, um amigo do Rui e a irmã deste. A viagem foi muito agradável, demo-nos todos muito bem. E assim, em quatro dias, e apenas com um pequeno in(a)cidente que não merece ser contado, fomos até à Holanda. Estive dois ou três dias com eles a assistir às regatas, tendo aproveitado para conhecer um pouco do "campo" holandês e para fazer um passeio até Groningen, uma cidade interessante. Após esses três dias, parti então à aventura, de comboio e sózinho. 1.º destino - Berlim. Estávamos, não digo em plena guerra fria, porque o "clima" entre os dois blocos, o ocidental e o soviético, nos últimos anos tinha vindo a acalmar, mas mesmo assim, vivia-se um momento na história contemporânea que fazia com que estar junto ao Muro de Berlim, com tudo o que o "Muro" representava, fosse uma verdadeira experiência. Andei quilómetros junto ao "Muro", nos pontos mais atractivos. Uns pela possibilidade de se poder ver o "outro lado" (tendo de permeio muito arame farpado, soldados bem armados em guaritas, e inúmeras câmaras de filmar devidamente posicionadas). Outros, por serem locais em que se tinham passado históricas tentativas de fugir ao Comunismo. Muitas delas culminando com a morte dos que o tentavam (nesses locais, cruzes cristãs estavam colocadas em memória dos mortos). Berlim Ocidental era, por sua vez, uma cidade extremamente interessante também pela sua reconhecida actividade cultural de índole mais underground. Mas o meu objectivo era, claro, passar para o "outro lado". Ir conhecer (infiltrar-me, era a sensação) em Berlim Leste (depois de Moscovo, arrisco-me a dizer, a cidade comunista na esfera soviética mais simbólica). E assim foi. Atravessei a fronteira a pé, em Check Point Charlie, e visitei a cidade. Pessoas simpáticas, algo amorfas, de indumentária simples, muitos soldados fardados por todo o lado. Recordo-me (sem grande precisão) de assistir a um render da guarda bem à "soviética", e dos, hoje míticos, Trabants, únicos carros existentes (ou quase), a circularem por todo o lado. Recordo-me da arquitectura grandiosa em termos das dimensões dos edifícios e das praças, mas muito decadente no que respeita à sua manutenção. Os alemães de Berlim Leste, por sua vez, não podiam, como sabemos, percorrer o sentido inverso ao que eu fiz. Aliás, é incrível pensar que há menos de vinte anos, nos países de regime comunista, regime inspirador da liberdade que nos foi prometida em 1974 (15 anos antes!), não era permitido aos seus cidadãos, sair das suas fronteiras, visitar e conhecer outros países que não países igualmente comunistas. Ao fim de alguns dias rumei a Praga. A cidade de Praga é(ra) imponente, pela sua história, pelo seu (então) presente. Sentia-se no ar a Praga de Milan Kundera, dominada mas não rendida. Na Ponte Imperador Carlos IV, lembro-me de, a partir da tarde e durante toda a noite, se juntar imensa gente (jovens e menos jovens) para ouvir canções que reclamavam de forma poética o fim da opressão comunista soviética. Aos amigos que fiz, previ que a queda do "Muro" estava iminente (na verdade não fui eu que previ, eram sim os ventos da perestroika e as intenções de Mickail Gorbatchov que já tinham chegado há algum tempo a Portugal). Eles, os amigos que fiz, não acreditavam que fosse tão cedo. Mal sabiamos todos que o Muro de Berlim iria "cair" três meses depois, a 9 de Novembro de 1989, surpreendendo, apesar de tudo, todo o Mundo Livre. Do dia a dia, recordo que o valor do dólar, trocado em meios clandestinos, me possibilitava comer em restaurantes a que os locais não tinham acesso (já no ano anterior tinha tido a mesma experiência em Budapeste). Grandes salões, requintados mas ao mesmo tempo decadentes, que pareciam saídos de um passado longínquo. Recordo também o cheiro a estragado nos supermercados, oriundo dos leites, manteigas e iogurtes (apesar de ser Agosto não havia frigoríficos a funcionar), e também de nas lojas pouco haver que se pudesse comprar. Uma amiga que conheci, de Berlim Leste, a Kirstin, que se encontrava igualmente de férias em Praga, fez um alarido entusiamado, que na altura não compreendi, quando, às compras, viu umas peças de roupa interior que, pensei eu, a poucas mulheres pudessem atrair. E foi essa a minha experiência em territórios comunistas. Custou-me sair de Praga. Tinha criado amizades que, apesar do pouco tempo (mas que vivido com muita intensidade), custaram quebrar... E chegou o dia de continuar e de seguir, agora directo à Áustria, mais exactamente Innsbruck no Tirol (Alpes). Uma viagem longa (escrevi num postal que mandei para casa que... cheguei cansado). Nas viagens de inter-rail um dos truques para poupar dinheiro é(ra) dormir nos comboios. Nem sempre se dormia, era, o suficiente para recarregar todas as energias dispendidas. Innsbruck no Verão tem a beleza do verde e das flores. Toda a Áustria, aliás. Para além disso, convida às caminhadas e passeios de bicicleta pelas altas montanhas em que se insere. O que fiz nos 3 dias em que lá estive. Continuei, agora para Munique. Uma Alemanha diferente da Alemanha de Berlim Ocidental. Com um interesse diferente. Mas com muito interesse. Um civismo "vivo" e bem disposto. Uma cidade alegre e organizada. A representação da Alemanha recuperada da destruição quase total que sofreu com a guerra. E por isso orgulhosa de o ter conseguido. Teve ajuda, sabemos. Mas sabemos também que outros nem com ajuda o conseguiram. Sem (ou, pelo menos, com poucos) complexos do passado recente, do período do Nacional-socialismo. Sem complexos mas compreendendo o erro e não o querendo repetir. Falo do nazismo, claro. A propósito, visitei o que foi o campo de concentração de Dachau (impressionará os mais incensíveis). Após um Bayern 3 x 1 Colónia, no Estádio Olímpico (ainda não havia o Allianz Arena), segui para Zurique. Em Zurique estive pouco tempo. O suficiente para apreciar a beleza da cidade, do seu lago e das montanhas que a cercam. De perceber o que era a pontualidade com os combóios a partir ao segundo (mesmo). De me ver, desprevenido, e de máquina fotográfica ao pescoço, num bonito parque, grande e muito verde, cheio de... viciados em heroína. Com as agulhas no braço para quem quizesse ver. As autoridades achavam que desta forma, ao menos, sabiam onde eles (os viciados em heroína) estavam concentrados, não estando assim, escondidos e espalhados, um pouco por toda a cidade. Desta maneira, era mais fácil controlar os "estragos". Recordo-me também dos emigrantes portugueses que encontrei. Não parecendo suiços, claro, não pareciam também portugueses. Ou pareceriam portugueses, doutros tempos. Perdidos num vácuo do tempo. Próxima e última paragem, Barcelona. Já estava cansado, o que foi pena. Mas não deixei de percorrer Las Ramblas e de visitar a Sagrada Família, a Plaza Colon (que como sabemos era português), o estádio do Barcelona (!), e o Estádio Olímpico de Montjuic, em reconstrução, onde Barcelona iria, três anos depois, realizar, com muito sucesso, os XXV Jogos Olímpicos da Era Moderna. Chegada a Lisboa.

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